Belchior foi um dos primeiros artistas brasileiros a desviar nosso olhar para os hermanos.
Gostando ou não das suas canções de letras inovadoras e da voz anasalada, mostrava que
vivíamos de costas para os países latinos, enquanto reverenciávamos os americanos do
Norte e os europeus.
“Tenho 25 anos de sonhos, de sangue e de América do Sul, por força desse meu destino, um tango argentino pega bem melhor que o blues”, cantou ele em “A Palo Seco”.
Nesse mesmo período, início dos anos 70, outros artistas engrossaram o coro apontando a latinidade que aqui insistíamos ignorar, fosse por questões culturais, econômicas ou políticas.
Talvez as ditaduras militares daquele período, aqui e em outros países latinos, tenham induzido a essa tomada de consciência a partir de canções e ritmos típicos.
“Eu estava em San Vicente, coração americano com sabor de vidro e corte”, entoava
Milton Nascimento.
Coincidentemente, no último domingo, o violinista gaúcho Yamandu Costa publicou
um texto onde diz que o brasileiro não se aceita como latino-americano e acaba perdendo muito com isso.
“Como ignorar os bambucos da Colômbia, o landó afro-peruano e a chacareira argentina”, pontuou.
Yamandu, virtuose no instrumento, ressalta que “a América Latina é a minha maior inspiração desde a infância”.
Certamente, aquele rapaz latino-americano sem dinheiro no banco nem parentes importantes, vindo do interior do Ceará, contribuiu para que outros talentos de diferentes artes se reposicionassem prestando alguma atenção aos hermanos e saindo daquele secular postura: de frente para os conquistadores, de costas para os demais latinos e sua ampla mestiçagem.
E se a língua ainda é uma barreira, a música tem o poder de pairar acima. “Os compositores latino-americanos não brasileiros sempre se inspiraram em nossa música para enriquecer a deles”, aponta Yamandu.
Nos últimos dez anos, Belchior chamou atenção não por seu canto, mas pelo silêncio que se impôs e por suas andanças por países latinos, deixando um rastro de dívidas e cercado de suposições.
Uma delas: induzido pela mulher de ideias socialistas, praticava desapego aos bens materiais. Por sinal, foi encontrado morto numa casa onde morava de favor na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul.
Além de escrever letras cortantes afiadas pela veia literária, beliscava singelezas inesquecíveis: “Calça nova de riscado, paletó de linho branco, que até o mês passado lá no campo ainda era flor” (“Velas do Mucuripe”) e “No Corcovado quem abre os braços sou eu, Copacabana esta semana o mar sou eu” (“Paralelas”).
Agora, aos 70 anos, esse senhor latino-americano sai de cena. Permanece sua obra de canto frontal que ecoa além dos Andes, lagos, vilas, campos e cidades do continente.
No ar, paira aquela sensação de que ficamos mais tristes e sozinhos.