Todo agosto é meio ou totalmente aziago e sempre traz um repertório inesgotável de perdas, conflitos, tragédias, queimadas. Neste agosto, o frio pegou, o mar andou revolto, barcos naufragaram, a crise econômica oscilou e a reforma política ficou à deriva. Como nem tudo é inteiramente ruim, a luta contra o feminicídio esteve em alta, embora não tenha livrado maioria das vítimas da transferência de culpa transmitida pelo algoz. Joga-se a indefesa vítima na vala comum da prostituição, traição ou droga, para justificar o que não tem conserto.

Também esteve em alta o debate contra a homofobia e, em especial, a intolerância contra a mudança de sexo, que parece ser a bola da vez. Uma piadinha circulou num para-choque de caminhão de motorista entrando no circuito: “Faço mudança, menos de sexo”. E até Chico Buarque, quem diria, ficou no meio do fogo-cruzado, acusado de machista, por ter declarado em sua nova canção “Tua cantiga”, que trocaria a mulher, filhos e família, pela amante.

Retrucou que machista seria ficar com a mulher, a família e a amante, ao mesmo tempo, como muitos fazem. Aliás, Chico Buarque também acertou no novo disco, outra vez. Se antigamente o País quase parava aguardando o disco novo do Roberto Carlos, agora quase ninguém para por causa do disco de quem quer que seja. Mas, no caso de ”Caravanas”, novo trabalho do compositor, pode-se dizer que enquanto cães ladram, o nosso maior cronista musical passa jogando pérolas, mesmo que não sejam percebidas.

Na canção “Tua cantiga”, o propalado machismo acabou encobrindo preciosidades, tipo “basta soprar meu nome com teu perfume pra me atrair”, “pisando em plumas, toda manhã eu te despertarei” ou “terei ciúme até de mim, no espelho a te abraçar”.  Na sequência, “Blues pra Bia” mostra o compositor mexendo com a troca de gêneros: “Eu fiz este blues pra Bia, mas Bia não vem me ouvir”, concluindo, após perceber que Bia talvez queira lhe avisar que meninos não têm lugar em seu coração: “Até posso virar menina, pra ela me namorar”.

E Chico outra vez revisita o futebol, paixão antiga, com “Jogo de Bola”, quando num samba enviesado lembra de Marias-chuteira, e exalta um “Puskás eras, a fera das feras da esfera”, lançando para arquibaldos e geraldinos versos de efeito sobre o grande astro da seleção húngara de 1954.  O disco enfileira harmônicas parcerias familiares, “Massarandupió” (Chico Brown, neto), adornada de cordas e sopros, “Dueto” (Clara Buarque, neta), e chega até Havana, na viagem abolerada de “Casualmente”, parceria com Jorge Helder.

Ali, derrama-se em recuerdos capazes de agradar até coxinhas, que vivem acusando o compositor de mortadela: “Não voltará nunca mais/a canção sentimental/que casualmente em Havana escutei a cantar/uma mulher”. Alimenta a esperança de regressar, percorrer as ruas em busca da mulher, do bolero, do crepúsculo na catedral. E conclui “que o mar de Havana é o mesmo, porém não é igual”. Coincidência ou não, nas diferentes matérias publicadas por grandes jornais sobre o disco, pouco ou nada sobre o passeio sonoro do compositor por Cuba, de onde nunca escondeu a admiração pelo regime dos irmãos Castro apontando os avanços sociais da ilha. A omissão parece premeditada, sinal de que o bloqueio contra Cuba não é apenas econômico.  

Após o samba-canção “Desaforos”, Chico Buarque chega aos finalmente exibindo “Caravanas”, recheada de personagens do nosso cotidiano insano. Vai dos refugiados abarrotados em caravelas sem destino aos suburbanos muçulmanos do Jacarezinho, com suas sungas estufadas “e seus sacos são granadas”. Arremata que “a culpa deve ser do sol, que bate na moleira, o sol”, como que a apontar que, mesmo com tantas caravanas, não há nada de muito valioso atravessando por esses desertos sombrios.

Pode não ser este o melhor disco do compositor que virou cantor, e já foi rara unanimidade no País nos tempos de “A Banda”, que todos queriam ouvir, até os militares do poder. Mas, a esta altura do campeonato, aos 73 anos, Chico Buarque continua batendo um bolão na música.