Por Ney Belo – O Estado constitucional legitima e organiza seus três Poderes a partir de um conjunto de deveres e faculdades aos quais se submetem todos aqueles que cumprem funções públicas de exercício de Poder.
Exercer a magistratura não é caminhar no mundo julgando atos alheios sendo guiado pela própria compreensão de moralidade, de ética, de política ou de religião. Também não é ouvir a voz das ruas – que, como afirmava João do Rio, pode ser cruel – e sim palmilhar nos limites do que está constitucionalmente definido.
Ser juiz é submeter-se aos deveres impostos pela Constituição e exercer as faculdades que o mesmo pacto político oferece.
A legitimidade do Judiciário é diferente das legitimidades do Executivo e do Legislativo exatamente porque ela não pode ser redutível ao desejo da maioria ou ao desejo das urnas.
Menos ainda o juiz deve ceder ao apelo popular!
A legitimidade e a razão de ser do Judiciário é toda ela constitucional! Sua garantia vem do que fora pactuado na sociedade entre diferentes e iguais; maioria e minoria!
Isso implica a necessidade de o juiz fundamentar suas decisões argumentando e justificando os raciocínios e as opções de escolha jurídica no momento em que decide.
O dever de motivação, argumentação e justificação das escolhas é não apenas determinação constitucional, mas razão de ser do próprio magistrado.
E quando está em causa a matéria penal, mais relevante torna-se a questão porque é preciso demonstrar em razão de quais motivos determinantes o réu é culpado e em que medida ele merece suportar a reprimenda imposta.
Também por imperativo constitucional o estado de base do processo penal é a inocência. Ainda que clamores públicos ou desejos morais ou objetivos políticos tomem o réu como presumivelmente culpado, a presunção de não culpabilidade é dogma do pacto político e imposição constitucional.
Dessa maneira, ao aplicar a pena, o juiz precisa argumentar claramente a ruptura dessa presunção, uma vez que a regra dos estados constitucionais é a liberdade e não o cárcere!
A obrigação de fundamentar a decisão, demonstrando de que forma o raciocínio jurídico conduziu ao resultado apresentado — a pena imposta — não se resume ao enquadramento jurídico, mas antes de tudo e principalmente há os fatos.
É preciso analisar as provas e justificar em razão de quais itens probatórios chegou-se à consequência jurídica condenatória.
Em outros termos, é necessário argumentar para justificar a existência do fato “F”, que se transforma em fato provado, e explicar em razão de que topoi se entendeu que este fato acarreta a prova “P”, que racionalmente prova o fato “G”, que é típico! Somente depois desse exercício de argumentação sobre fatos é que se vai construir a argumentação jurídicastricto sensu, ou propriamente dita.
Argumentação jurídica sobre fatos no processo penal – e a consequente justificação da prova de atos praticados que serão a base da argumentação jurídica para subsunção da consequência punitiva – é um capítulo da dogmática pouco explorado e até mesmo negado pela jurisdição criminal.
Na despedaçada segunda década do século XXI – quando ganhos extremamente importantes na seara da inibição de crimes foram ombreados a voluntarismos heroicos, a moralismos irracionais e a punitivismos medievais – argumentar sobre a prova virou capítulo esquecido, já que a presunção de algo como provado passou a ser mais forte do que a racionalidade da argumentação, que leva um fato específico a provar um fato criminoso.
Explico:
Se “A” é negro, mora no morro, foi abordado na favela às três horas da manhã e está armado, logo é traficante ou assaltante.
Se houve um assalto no asfalto às duas da manhã; se alguém foi preso com droga às três e meia, logo “A” é o assaltante ou o traficante.
No exemplo citado — fatos concretos e reais de um processo penal com sentença condenatória — a argumentação por presunção está carregada de pressupostos e pré-compreensões que induzem a uma consequência que não é fruto de argumentação sobre fatos e nem resiste a uma análise do seu contexto de justificação!
O local de moradia, a cor da pele — embora não declarada explicitamente — o porte ilegal de arma e o horário da abordagem jogam a função de justificativas não a partir de uma relação de causa e efeito, mas desde os preconceitos e compreensões morais do julgador.
O contexto de descoberta deixaria claro que a decisão é facilmente justificável para um juiz de classe média, branco, atraído para a magistratura por um salário superior a trinta mil reais, que não conhece a favela ou o mundo dos morros e a violência urbana e tende a utilizar suas pré-compreensões como elementos de definição da sua própria argumentação.
De outra banda é possível ver no caso de “Y”, servidor público que determina uma ordem de pagamento para a empresa “Z”, a vista se uma medição “M” que atesta a realização dos serviços, a sua condenação por corrupção passiva quando: a) a medição “M”era fraudulenta e os serviços não foram executados; b) a empresa “Z” e o proprietário “P” respondem a vários processos da mesma natureza.
A compreensão de que somos o “país da corrupção” e de que todo funcionário público — ou político — é necessariamente “bandido” faz com que o fato “M” praticado em benefício da empresa “Z” do proprietário “P” seja imediatamente atribuído — em coautoria ou conluio — ao servidor “Y”.
A justificativa, ou o seu arremedo, são guiados não pela racionalidade da argumentação jurídica sobre fatos, mas tão somente por pré-compressões que justificam a decisão.
Em ambos os casos, há uma série de elementos que não são levados em conta no processo de argumentação pois as escolhas dos vínculos entre fato “B”: razão da prova — e fato “C”: fato provado, dão-se por outros critérios que não a racionalidade da argumentação jurídica.
Nos exemplos — todos reais e oriundos de processos concretos — “A” poderia ter saído de casa para beber, ir à farmácia ou encontrar a namorada, armado por medo de ser assaltado e nenhuma relação ter com a droga encontrada posteriormente ou com o assalto praticado hora antes.
“Y” poderia ter assinado a ordem de pagamento em total crédito ao documento técnico firmado por engenheiro e juntado ao processo atestando a obra e nem sequer conhecer o proprietário da empresa contratada.
Os contextos de justificação de ambas as decisões mostram que critérios de pré-compreensão — o senso comum, a origem social do juiz, a sua moralidade interna, a sua compreensão política — afetam as escolhas dos vínculos fáticos, permitindo a normalização de seus pressupostos como guias condutoras do reconhecimento de veracidade.
É como se Toumin, Atienza ou Alexy não oferecerem metodologia para a argumentação que fosse melhor que as redes sociais, os grupos de WhatsApp, ou os âncoras dos jornais de audiência.
Urgentemente precisamos pensar a argumentação de fatos e a sua vinculação com o apoio das decisões no processo penal!
Justificar por que algo prova a realização de um evento criminoso é um capítulo fundamental do processo penal que precisa ser construído para a sua plena realização num Estado Democrático de Direito onde o juiz possa ser constitucional e não aristocrata, como nos tempos do senhor de Villefort, tão bem descrito por Alexandre Dumas.