Brasil, idos de 2020. Uma séria pandemia faz gemer todo um povo. As imagens de urnas funerárias enfileiradas e a dor do adeus à distância comovem – ou deveriam comover – os mais frios corações.

Eis que surge, em momento tão doído, a notícia de que ambulantes estariam vendendo doses de uma vacina salvadora – se legítima fosse – em dado subúrbio do Rio de Janeiro.

Poucos meses antes, aliás, uma empresa da mesma cidade foi denunciada por comercializar a mesma ‘mercadoria’.

Alguns poderiam dizer que estaria ali, no tabuleiro de um camelô, apenas mais um produto falsificado. Humildemente discordo.

A cena retrata, em verdade, o embrutecimento de um país. O entorpecer de uma gente.

Troque-se aquele ambulante por uma das autoridades que, em plena pandemia, desviaram recursos destinados à saúde.

Que foram insensíveis. Substitua-se a vacina falsa pela falsidade das tantas promessas de que o saneamento básico e o sistema de saúde pública seriam objeto de sincera atenção.

E a cena continuará a mesma. Não menos dantesca. São todos iguais, afinal – seres sem alma. Mercadores do mal.

Não se esqueça das pessoas que, segundo noticiado, lá estavam em considerável número, angustiadas pela tentação daquele iludir que serena a mente.

Retire-as do quadro. Substitua-as por todos quantos aceitam, bajulam e até protegem corruptos por este país afora, em ilusão absolutamente similar. E o cenário não mudará.

A moldura que torna possível exibir quadros que tais nos é conhecida. Atende pelo nome de ‘Estado ausente’.

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De ‘instituições amesquinhadas’. De ‘rotina do absurdo’. De ‘vida como der’. De ‘salve-se quem puder’.

Há, finalmente, o fundo da cena. Ele é invisível – cor de alma. Das almas dos nossos semelhantes que esperaram em vão por algo que os salvaria de horrores mil.

Que vimos partir, apequenados e impotentes – eles e nós. Segue com cada um deles um pedaço da Pátria. O lamento de um Brasil menor – sob todos os sentidos.

Este quadro não é daqueles que habitam museus – antes, está exposto em sua rua. Ali na frente.

Saia de sua prisão, digo, morada, e contemple-o com atenção – você ou algum dos seus está nele, afinal. Ou já esteve. Ou estará.

Aproxime-se dele – e ouvirá, sob a forma de um leve sussurro, todo um povo a gritar, com Disraeli, que “a vida é curta demais para ser pequena”.


O autor é jornalista, desembargador no TJES e escreve semanalmente para a AGC.

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