Por Pedro Valls Feu Rosa – “Sejamos claros. A corrupção mata. O dinheiro desviado pela corrupção a cada ano é suficiente para alimentar oitenta vezes a quantidade de famintos do mundo”. Estas palavras, pronunciadas pelo Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, tornam clara a necessidade de enfrentarmos, com firmeza, o maior câncer da humanidade.

Ao comentar tal declaração, o Professor Mark Pieth, da Universidade de Basel (Suíça), nos ensinou ser “correto que violações de direitos humanos e corrupção frequentemente andam de mãos dadas”. Concluiu, em seguida, que “estratégias combinadas para combater a corrupção e promover os direitos humanos podem atender as duas agendas”.
 
É quando sugiro descermos aos detalhes, à proposição de medidas concretas que, reprimindo a corrupção, impeçam as violações de direitos humanos dela decorrentes.
 
Comecemos pela imprensa livre.
 
É aqui, defendendo o direito humano de acesso à informação, que deveremos travar a maior de nossas batalhas contra a corrupção. Afinal, como disse Thomas Jefferson, “onde a imprensa é livre e todo homem é capaz de ler tudo está salvo”.
 
A imprensa não é livre quando vinculada a poderosos grupos econômicos, cujos interesses quase sempre se sobrepõem aos da população. A imprensa não é livre quando depende da ajuda financeira de governos. A imprensa não é livre quando sujeita a uma censura disfarçada por parte do sistema legal. A imprensa não é livre quando utilizada pelo poder político e econômico como instrumento de dominação de países inteiros.
 
É paradoxal: em tempos de Internet e globalização, a humanidade depara-se com sua maior crise – a do acesso à informação. Olhem ao redor e percebam que, no mundo, apenas uma a cada sete pessoas vive em países nos quais as notícias são livremente divulgadas – e não estão incluídos neste cálculo os mecanismos mais sutis de controle dos meios de comunicação, aos quais me referi, e nem os casos de quase monopólio de divulgação de notícias.
 
A consequência maior desta realidade é convivermos com o que eu chamo de “corrupção geopolítica”, responsável por milhões de mortos e refugiados em guerras artificialmente provocadas e por crises econômicas globais absurdas em causas e efeitos. A menor, é sofrermos, enquanto cidadãos, com o declínio do padrão dos serviços públicos em geral.
 
Precisamos, pois, enquanto humanidade, conceber leis que protejam a imprensa da influência inadequada do poder político e econômico e dos mecanismos de censura disfarçada. Leis que obriguem cada veículo de comunicação a informar a população sobre as origens de seu faturamento. Leis que imponham ampla transparência na atividade de estabelecer o que é e o que não é notícia. Leis que impeçam práticas monopolistas nos meios de comunicação. Leis que obriguem a divulgação dos vínculos profissionais dos formadores de opinião e de suas famílias.
 
Nosso tema seguinte será aquele relativo à autoridade moral das instituições.
 
É fundamental, para a própria sobrevivência da raça humana, a preservação da autoridade moral de suas instituições – e eis aí algo óbvio.
 
Nossas instituições perdem a confiança do povo quando seus membros são escolhidos por métodos obscuros ou injustos. Nossas instituições se desmoralizam quando seus membros ficam sujeitos às benesses ou às vinganças do poder político ou econômico. Nossas instituições são corroídas por dentro quando seus membros, por falta de transparência, não são devidamente recompensados ou punidos. Nossas instituições são alvo de escárnio quando os corruptos compram suas inocências com a ajuda dos recursos que desviaram.
 
Eis aí a outra crise que flagela a humanidade: a institucional. Contemplem o mundo e percebam que mais da metade de sua população já não confia plenamente nas instituições de seus países – seja naqueles mais miseráveis e primitivos ou nos mais ricos e sofisticados.
 
O custo desta crise é a crescente dificuldade de recrutarmos verdadeiros defensores do bem – desde o mais humilde funcionário até a mais alta autoridade. O exercício idealista e sério de uma função pública passou a ser não mais uma profissão, mas um sacerdócio reservado a alguns poucos que se dispõem a pagar elevado preço pessoal.
 
Mudar isto é possível – basta que se torne absolutamente transparente a vida profissional de cada habitante do mundo das leis, permitindo à população a depuração e o aperfeiçoamento das instituições. Que seja obrigatória a divulgação de todo valor gasto por empresas com autoridades, políticos ou instituições, seja a que título for. Que se apure, com transparência, se criminosa a origem dos recursos destinados por acusados de corrupção ao pagamento de multas e defesas judiciais caríssimas. Que as instituições tenham verdadeira independência orçamentária e financeira, com base em percentuais da arrecadação, não mais ficando sujeitas a pressões de qualquer tipo.
 
Que tal falarmos, agora, da eficiência do mundo das leis?
 
Já data da antiguidade clássica o ensinamento de que não basta ter direitos – há que se ter instrumentos para exercê-los.
 
Como punirmos a grande corrupção, mãe das menores, quando as fortunas que gerou transitam livremente entre países, rumo a paraísos fiscais? Como combatermos o mal globalizado com armas regionalizadas? Como prevenirmos o crime quando a cooperação entre autoridades, instituições e países é dificultada pela burocracia?
 
Chegamos à crise seguinte: a legal. Constatem que menos de 1% do que acontece nas ruas chega ao mundo das leis, a cada dia mais desacreditado. Reparem que já não temos como reprimir de forma eficiente o crime digital – seja a nível local ou mundial, seja sob a forma de um simples vírus ou de um amplo ataque terrorista. Nossos Estados, vítimas de uma burocracia criada para controlá-los, estão a cada dia mais impotentes diante das exigências do momento histórico. E a população, vítima da falta de transparência, não tem sequer como acompanhar de forma adequada o andamento dos casos de maior interesse social – dentre eles os relacionados à corrupção.
 
A consequência é um quadro gravíssimo de impunidade para os poderosos e de opressão para os fracos – afinal, alguém tem que ser punido para que todos saibam que temos leis. E não nos esqueçamos de nós mesmos: vivemos menos, e vivemos de forma pior, por conta deste quadro. Finalmente, esquecida pelas leis, a realidade vinga-se ignorando-as, estimulando a barbárie mais cruel e desumana.
 
Nós temos como melhorar este quadro – a eliminação do excesso de burocracia e a criação de mecanismos de cooperação seriam suficientes para reduzir os níveis de impunidade. Ajudaria, igualmente, a divulgação clara sobre o que está em atraso no mundo das leis, há quanto tempo e por culpa de qual profissional. Para que a fiscalização possa ser perfeita, fundamental a criação de setores específicos de repressão à corrupção e às violações de direitos humanos – na justiça e na administração em geral – cujos responsáveis possam ser claramente identificados e cobrados.
 
Não nos esqueçamos, finalmente, da sobriedade do mundo corporativo.
 
Vivemos no mundo das corporações gigantescas controladas por empregados que desconhecem limites – e eis aí uma das maiores fontes conhecidas de corrupção e desrespeito aos direitos humanos.
 
Na África, milhões perdem suas vidas em guerras causadas pela ganância de empresas que não desejam pagar o preço justo por recursos naturais. Na Europa e na Ásia, milhões adoecem vítimas de níveis de poluição que somente a loucura do lucro a qualquer custo explica. Nos EUA, outros milhões perdem suas casas e seus empregos por conta da especulação financeira de algumas poucas corporações.
 
Esta é a última das quatro grandes crises que a humanidade enfrenta: a corporativa. Os empregados destes poderosos grupos econômicos, na busca insaciável por lucros que lhes proporcionem salários e bônus milionários, tem corrompido nosso sistema político, legal e até mesmo acadêmico.
 
Cito dois exemplos. O primeiro vem da África, onde trava-se há anos uma guerra em torno de um minério chamado “coltan”, que já vitimou cinco milhões de seres humanos, conforme dados da ONU. Foram identificadas 157 empresas ocidentais envolvidas, e calculou-se que um telefone celular fabricado com matéria-prima daquela região custa a vida de duas crianças. Pois bem: sequer sabemos os nomes destas empresas!
 
O segundo exemplo responde pelo nome de “crise econômica de 2008”. Custou milhões de empregos, retirou de milhões de seres humanos suas casas e a esperança de uma velhice digna. As pessoas que a causaram, suportadas por um pensamento acadêmico corrompido, acabaram milionárias e intocadas pelas autoridades que deveriam nos proteger – e que ainda estão na administração pública, apesar de acusadas de corrupção. Quem pagou por tamanho absurdo, ao final das contas, fomos nós.
 
Sou um defensor do capitalismo. Mas vejo claramente que a existência de empresas “grandes demais para quebrar”, geridas por empregados movidos a salários proporcionais aos lucros que conseguem, são a maior fonte de desgraças do mundo moderno. Não se pode, seriamente, falar em proteger direitos humanos e prevenir corrupção sem que se enfrente este problema.
 
E é possível enfrentá-lo, com leis limitando o tamanho e obrigando a regionalização destas corporações, particularmente aquelas da área financeira, e bem assim reduzindo a níveis normais a remuneração dos empregados que as dirigem. Caso comprovado algum ato de corrupção, que seja penalizada também a empresa, inclusive com a proibição de voltar a se relacionar com a administração pública.
 
Todas as medidas neste texto enumeradas são absolutamente simples e lógicas. Não demandam grandes estudos ou pesquisas. Estão ao nosso alcance. Podem ser facilmente implantadas em todo o mundo. E evitariam, ao prevenir incontáveis casos de corrupção, graves violações a direitos humanos. No entanto, nenhum de nós viverá o suficiente para ver sequer uma delas implementada. Nenhum de nós.
 
Isto porque enfrentamos, aqui, em verdade, o mal em sua essência mais pura. E este não é daqueles combates a serem vencidos por uma única geração. Ele confunde-se com a própria saga da humanidade através dos tempos.
 
Mas que isto não nos cause desânimo. Não estamos sendo derrotados. Só não temos percebido, talvez, que o nosso tempo não é o de Deus. Que estamos, na verdade, apenas trilhando um caminho que recebemos de outros, e abrindo, com nobreza, novos horizontes para os que nos sucederão – afinal, como dizia Benjamim Disraeli, “a vida é curta demais para ser pequena”.
- Publicidade -