Quando circulava pela Norte-Sul, na altura de Jardim Camburi, a dentista Laura Coutinho deparou-se com um desses carros caros e altos, blindado de películas, ostentando o seguinte adesivo no vidro traseiro: “Bolsonaro presidente”.

Seu primeiro ímpeto foi de rir do despropósito pregado, porém lembrou-se que Trump também já foi visto como uma piada de salão, mas acabou virando presidente dos EUA.

Em sua marcha pela Norte-Sul, pensou: não seria aquele simples adesivo mais um sinal do avanço da extrema direita pelo mundo?

No último 31 de março, Laura Coutinho foi palestrante, na Ufes, durante evento que marcou o lançamento do relatório da Comissão da Verdade, que registra a história de 15 ex-estudantes da universidade presos e perseguidos pela ditadura militar (1964-85).

Ali, lembrou sua trajetória de presa e torturada, de perder um filho nos porões da repressão, das posteriores retaliações e restrições sofridas no cotidiano e mercado de trabalho.

“Era vista como uma espécie de leprosa, ninguém queria contato”, resumiu.

Concluiu sua fala voltando a Bolsonaro, notório defensor de torturadores, alertando que o Brasil é o único país latino-americano que superou uma ditadura militar, avançou para a redemocratização – entre altos e baixos – , contudo não puniu nenhum torturador.

“Ao contrário, defensores do regime militar foram depois reaproveitados em governos de presidente eleitos, viraram nomes de logradouros, e ainda são exaltados, seja por desconhecimento histórico ou má-fé”, frisou.

O que ela não narrou à plateia que lotou o auditório do CT-1 da Ufes é que continua até hoje militante de causas solidárias e populares, em sua prática diária.

E nunca se interessou pela indenização dada a quem foi preso político na ditadura, simplesmente por entender que sua opção era uma ação de resistência.

“Não era um investimento mercantil, era ideologia, sabíamos do risco existente“, avalia.

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Também não pretende mais tocar publicamente nesse assunto, “pois é como remoer vísceras”, compara.

Sua última incursão ao tema surge agora de modo aleatório: duas jovens documentaristas resolveram registrar sua história num curta, com ênfase no papel da mulher no enfrentamento da ditadura e seus efeitos ao longo da vida.

Afinal, as mulheres sempre foram vítimas favoritas de repressores, não propriamente pela tortura física, mas por servir sexualmente para “quebrar a própria moral e à do seu parceiro”, tudo num só pacote de horrores.

E quando essa grande mulher mignon, com quem estou casado há 35 anos, encontrava-se nos cárceres do 38º BI, quase aos pés do Convento da Penha – santa ironia – e, depois, na Oban, São Paulo, eu era somente mais um rapaz latino-americano abrindo os olhos para um mundo politicamente conturbado, sombrio, cheio de censura, pessoas desconfiadas, gente “andando de lado e olhando pro chão”, como diz o samba do Chico.

Nesse mesmo período, alguns amigos também caíram na malha da repressão, foram presos, torturados, perseguidos, excluídos, todo esse roteiro conhecido e, ao mesmo tempo, ainda ignorado por muitos.

Então, para que esse tipo de treva não se repita e não tenhamos o risco de eleger simpatizantes de torturadores, para qualquer tipo de cargo, é oportuno o documento lançado pela Ufes, mesmo com o duro corte de verbas federais.

Pode ser acessado aqui:
http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6768/1/Livro%20Comissao%20da%20Verdade%20%20web.pdf

Igualmente importante é que outras instituições ligadas ao ensino e à cultura repliquem publicações do gênero abrangendo também a história de outros estudantes, artistas,
profissionais liberais e todos aqueles que se envolveram de fato na luta contra a ditadura militar.

Pisca-alerta ligado, pois tem muito “herói da resistência” fajuto por ai.

Somente assim vamos evitar que se materialize aquele sinistro adesivo pró-Bolsonaro, estampado naquele carro caro visto por Laura numa transversal do tempo da Norte-Sul.

Luiz Trevisan é jornalista e músico.

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