“Políticos, em geral, somente se interessam por cultura na hora de promover alguma homenagem ou ilustrar discurso. Aliás, a última tentativa feita num terreno próximo, a construção do Cais das Artes, na Enseada do Suá, tornou-se um grande elefante branco do patrimônio público frente ao mar”
Nada é para sempre, somente a dúvida existencial é eterna e até os anéis de Saturno irão desaparecer em 100 milhões de anos, dizem os cientistas. Sobre a Terra, já estamos acostumados à previsão de que um dia também será engolida pelo Sol mais adiante, coisa de quatro bilhões e picos.
Isso se até lá resistir aos Trumps da vida, algum asteróide errante ou conflito nuclear. Ainda sobre o nosso planeta paira uma ameaça imaterial, que é a memória humana negligenciada ou apagada. Dizem que a cada ano novo a gente desconstrói aquilo que foi feito no ano passado.
Também sabemos que existe um relógio biológico marcando o bom funcionamento da nossa memória. Até os 23 anos, beleza: você fixa praticamente tudo e com bastante nitidez, seja livro, música, filme, álgebra, análise sintática, imagens, sentimentos diversos.
Depois desta faixa, o HD personal começa a ficar carregado, vez por outra passa por um resert automático, e a gente vai levando e acumulando outros conhecimentos e experiências.
Porém, com o avançar dos anos, a memória vai se tornando mais seletiva, restrita, e costuma apagar aqueles maus instantes, fracassos e micos inevitáveis.
Prevalecem os momentos marcantes: primeiro beijo, a primeira vez de ver o mar, a conquista do canudo na escola, a festa de formatura, namoros relevantes, amizades, paixões, casamentos, filhos etc. E, naturalmente, há toda uma trilha sonora de cada um, os filmes favoritos, os romances, aventuras e as viagens inesquecíveis.
Uma das melhores ilustrações de como funciona nossa memória ao longo da vida ouvi do cartunista, poeta e teatrólogo Milson Henriques, um campista que fez história na vida cultural de Vitória, ao longo dos últimos 50 anos.
Milson comparava nossa memória ao observar de uma paisagem pela janela de um veículo em movimento. Tudo aquilo que se encontra mais distante, as montanhas, nuvens no céu, prédios etc., você vê com bastante nitidez. E o que se encontra mais perto, e quanto mais próximo estiver, menor nitidez e mais rapidamente passa por nós, e logo se apaga.
O fato é que nem sempre cuidamos adequadamente da nossa memória, principalmente da memória coletiva. Há tempos tento sem sucesso “vender” um projeto que é criar o Museu da Pessoa, para perenizar imagens, vozes e pensamentos de personalidades capixabas, sejam políticos, artistas, esportistas, pensadores.
Também o radialista e pesquisador musical Tarcisio Faustini anda estimulando a criação estadual de um Museu da Imagem e do Som. Penso que as duas coisas se complementam.
Porém, igual a ele, ando descrente de que isso, de uma forma ou outra, possa ir adiante. Políticos, em geral, somente se interessam por cultura na hora de promover alguma homenagem ou ilustrar discurso.
Aliás, a última tentativa feita num terreno próximo, a construção do Cais das Artes, na Enseada do Suá, tornou-se um grande elefante branco do patrimônio público frente ao mar. E você bem sabe que o difícil mesmo é remover qualquer elefante, vivo ou morto. Sem contar a memória gigante.
Luiz Trevisan é jornalista e músico do Espírito Santo. Escreve canções, lançou dois discos autorais, e é autor de documentários.