Por Marcos Joaquim G Alves
Não suportamos o pensamento discordante. Não gostamos do contraditório. A oposição de ideias causa desconforto no fundo da nossa alma.
O sangue corre mais rápido, o coração bate mais depressa e a pupila dilata. A temperatura do corpo sobe, sentimos náusea e nos afastamos de quem trouxe o pensamento diferente.
O sentimento é de repulsa por aquela pessoa. Passamos a não gostar dela. O nosso egocentrismo narcisista nos distancia de sermos confrontados por pensamentos diferentes.
O mundo dividido, gravemente, por divergência de ideias é insustentável para a evolução humana.
Os pensamentos de José Saramago sempre me incomodaram sobre o papel da religião na divisão do nosso mundo: as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos, e sim, para dividir (…) o mundo seria mais pacífico se todos fôssemos ateus. (As Palavras de Saramago, Cia das Letras, 2010).
No último dia do ano de 2022, Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, morreu e deixou um legado de “Opera Omnia” (Obras Completas) de 21 volumes.
Quando Prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé, o então Cardeal Ratzinger estabeleceu intensos debates contra a Teologia da Libertação, dos padres Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff.
Essa teoria defendia o repensar sobre os dogmas para aproximar igreja e política com o objetivo de resolver o problema da injustiça social. Porém, não há debate sobre os dogmas, já que não existe espaço para o contraditório.
E mais, não se pode confundir a vida material da política com a vida espiritual da religião. Por isso, os padres foram condenados por intermédio da Instrução aprovada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé aos 06 de agosto de 1984.
Dessa maneira, o Papa Bento XVI deixou uma lição histórica para a humanidade, de que não há espaço para o debate sobre os dogmas que fundam uma religião. Portanto, como envolver a religião no discurso político?
Haja vista que a essência do discurso político é o debate entre pensamentos diferentes, o contraditório dos plurais em busca da decisão do possível. Como envolver religião e política? Não se envolve. Não se pode e não se deve envolver. Só oportunistas confundem o mundo material e o espiritual. Tudo pelo poder.
Nos últimos anos, vimos um homem, Jair Messias Bolsonaro, e seus aliados, pseudos defensores do ideário de direita, escolherem o caminho mais fácil para chegar ao poder de um país: o da religião. São impostores, oportunistas.
Quando o pensamento religioso dogmático, que não admite o contraditório (essência da política), é inserido em um discurso político, o resultado é a construção de uma divisão na sociedade que passa a definir a luta pelo poder político entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo.
O discurso fácil, emotivo, religioso dogmático, que não admite a existência de pensamentos diferentes, leva parte da sociedade, composta por pessoas de bem, a cenas deprimentes de histeria coletiva e ruptura do tecido social, como presenciamos no último domingo (a depredação da Capital Federal do Brasil aos 08 de janeiro de 2023). O mundo já viveu isso.
Não faz muito tempo, vimos uma sociedade apaixonada seguir um líder com o símbolo de uma cruz de 5 mil anos atrás, símbolo esse que pertenceu a várias culturas e religiões, dos celtas aos budistas.
Sob o manto dessa cruz milenar, assistimos a tal sociedade apaixonada ser enganada por métodos de psicologia comunicacional invasiva de religiosidade dogmática: o bem contra o mal, Deus e o diabo, a luta contra os vermelhos e contra o comunismo, a defesa dos escolhidos pela raça, a salvação de Deus, e, literalmente, Deutschland über alles, expressão que ainda consta na primeira estrofe do hino alemão, mas difícil de cantar, por vergonha de um tempo que “Alemanha acima de tudo” era o principal slogan nazista.
E tudo isso para qual objetivo? A ideia era justamente que o discurso messiânico de um Fuhrer oportunista capturasse a mente, alma e espírito de uma sociedade de boa-fé que hoje sente vergonha desse passado que jamais pode ser esquecido, mas sim evitado.
No nosso país, nos tempos de hoje, aqueles que se autodenominam de direita andaram mal. Fizeram um desserviço ao país quando apoiaram e aceitaram os impostores e oportunistas do bolsonarismo a trazer a religião para o discurso político.
Vergonhosamente, trocaram o alto nível dos debates de conceitos e ideias entre a direita e a esquerda, pelo pobre e demagógico discurso do medo messiânico, do bem contra o mal.
Abandonaram a história de grandes nomes do liberalismo de direita que construíram reputações sólidas na política e nunca se escusaram de debater seus pensamentos com grandes quadros da esquerda.
Os mais antigos lembrarão do célebre debate entre Roberto Campos e Luís Carlos Prestes sobre Capitalismo e Socialismo, transmitido pela TVE, em 1985.
Os bons pensadores da direita precisam urgentemente recuperar o protagonismo, parar e refletir sobre tudo o que aconteceu e repensar o caminho, sem religião, sem discursos, enganosamente, emotivos messiânicos.
Os verdadeiros líderes políticos, homens públicos, estadistas da direita não podem e não devem se restringir apenas a ganhar uma eleição a qualquer preço, apropriando-se da religião para um projeto de poder.
É urgente a reconstrução de uma Nação plural, de direita e esquerda, com diálogo, com respeito, sob valores e princípios, justa e, principalmente, laica, de todas as cores, raças, credos, culturas e religiões.
O legado messiânico do bolsonarimo é uma doença que envergonha a história da nossa direita. Constrange, ameaça e agride pessoas, leva uma sociedade de bem à cegueira coletiva de um “messias” que salvará o Brasil do diabo, do comunismo, quando, na verdade, tais fariseus, impostores, bolsonaristas, querem a manutenção de um poder autocrático.
Sendo governo constituído ou não, a direita é responsável por um país de paz, de descendentes de índios, europeus e africanos, de orientais, uma pátria mãe que acolhe em harmonia judeus e árabes, sem conflitos históricos religiosos, uma nação de imigrantes, nativos e refugiados; um país de um povo e de todos os povos ao mesmo tempo, que acolhe o contraditório, o diferente, a diversidade, sob o manto principiológico do respeito.
Somos uma única pátria Brasil. Uma pátria universal. E não uma pátria de doentes bolsonaristas.
* Marcos Joaquim G Alves é advogado e professor, fundador do Instituto SHE