Por Luiz Trevisan
Quando você pensa que já viu e ouviu de tudo no atual cenário da crise política brasileira, até personagens da ficção entram em cena.
Se bem que esse negócio de contas bancárias no exterior, depósitos em paraísos fiscais, conta-laranja, conta que o dono não reconhece, conta que ninguém encontra, enfim, mais se assemelham àqueles livros e filmes de suspense repletos de agentes duplos, beldades ardilosas, brutamontes sanguinários e detetives fleumáticos.
Agora, sobrou para madame Bovary, personagem do romance de Gustave Flaubert, citada pelo ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, ao defender a permanência do PSDB como aliado do governo Temer.
“O PSDB tem compromisso com o programa de governo, o PSDB não é madame Bovary”, pontuou.
Ou seja, botou no mesmo saco das relações partidárias aquilo que a personagem do romance fazia em sua vida particular: contraindo dívidas, fantasiando, colecionando amantes para compensar desventuras do seu casamento.
A intenção do ministro é atinar para o fundo moral de uma relação, da fidelidade, mas, convenhamos, não existe território mais propenso a traições do que o relacionamento político, onde o parceiro de hoje pode ser o rival de amanhã.
Talvez uma dessas enquetes virtuais e instantâneas pudesse clarear: “Onde há mais traição, no rumo das urnas ou da alcova?”
Se depender da Executiva do PSDB capixaba, o comportamento a seguir será o mesmo de madame Bovary.
“A minha avaliação é que Temer não tem mais condições de governar. E não vamos transformar o Aécio em herói”, observa o presidente estadual da legenda, Jarbas de Assis.
Igual a um casamento que vai mal das pernas por diversos motivos, o tucanato capixaba considera que a relação com o governo Temer já deu, esgotou.
Trair agora passa a ser uma questão de sobrevivência da própria legenda.
Pensando bem, era mais ou menos com esse sentimento, do manter acesa a chama da vida, que madame Bovary dava continuidade às traições conjugais.
Ela se queixava do marido bronco, que não partilhava dos seus devaneios, e se amofinava naquela vida de mulher de um médico de província, quando tudo o que mais queria era brilhar à luz dos candelabros dos palácios de Paris.
Quando foi lançado em 1857, o autor do romance foi processado pelo Ministério Público por atentado “à moral e aos bons costumes”.
Esse processo, por vias transversas, acabou dando publicidade ao livro, posteriormente liberado após ruidoso julgamento onde, a certa altura, o juiz indagou ao escritor: “Afinal, quem é madame Bovary?” Flaubert, um avantajado e bigodudo normando, deu uma resposta que ficou famosa nos anais da literatura:
“Madame Bovary sou eu”. O que pesou mesmo no sucesso do livro foi o jeito como ele narrou a história de sua trágica heroína.
O livro é considerado ainda hoje por diversos críticos como o maior romance-poema já escrito.
Enfim, ao usar comparativamente madame Bovary, o ministro Aloysio Nunes mirou no que leu e parece ter acertado naquilo que não viu.
Luiz Trevisan é jornalista e músico.