Por Pedro V Feu Rosa
Dia desses li uma inacreditável matéria no respeitado jornal britânico “The Guardian”. Uma daquelas reportagens que nos põem a meditar sobre a humanidade e seus limites. Transcrevo a seguir alguns trechos, em tradução livre.
Assim começa o texto: “Uma pessoa presa em uma prisão secreta da CIA no Afeganistão foi utilizada como objeto vivo para o treinamento de interrogadores, que ficavam em fila para arremessar sua cabeça contra uma parede de madeira, deixando-a com danos cerebrais, conforme um relatório do governo dos EUA”.
Um ex-aluno, mencionado neste relatório, confirmou que “todos os estudantes ficavam em fila” para o arremesso, “a fim de que o instrutor tivesse certeza de que eles haviam dominado a técnica”, segundo consta com vistas a uma “certificação”.
Esclareceu-se que “não havia limite de tempo para estas aulas, porém tipicamente nenhuma durava mais de duas horas”. Um derradeiro detalhe: durante elas o torturado permanecia nu.
Aos resultados: “uma neuropsicóloga realizou um exame na cabeça” deste infeliz torturado “e constatou anormalidades indicando danos moderados a severos em diversas partes do seu cérebro, afetando da formação e recuperação de memórias até aspectos de comportamento”.
Esta médica registrou, ao final do seu laudo, que tais lesões eram “compatíveis com traumas físicos cerebrais”.
Segundo consta do relatório nenhuma informação útil foi extraída deste torturado ao longo de quase duas décadas de encarceramento – foi preso nos idos de 2003 e em 2022 ainda aguardava julgamento.
Sou juiz criminal há mais de três décadas. Acostumado a encontrar o horror em processos mil, ainda assim confesso-me chocado – pela forma vil, pelo perfil dos autores e por sua origem. E pela baixa repercussão de uma denúncia tão grave.
Fiquei a pensar na doída acusação de Eugène Ionesco:
“Em nome da religião constroem-se piras. Em nome das ideologias pessoas são torturadas e mortas. Em nome da justiça são injustiçadas. Em nome do amor a um país ou a uma raça outros países e raças são desprezados, discriminados ou massacrados”.
“Em nome da igualdade e da fraternidade praticam-se a perseguição e o ódio. Não há nada em comum entre os meios e os fins. Os meios vão muito mais longe que os fins. Na verdade, religião e ideologia são apenas álibis para esses meios”.