Por Pedro Valls Feu Rosa

Dia desses, visitando um dileto amigo e colega, dele ouvi uma deliciosa narrativa sobre canetas e resistência ao novo. Tudo começou em um pequeno cartório, palco do início de sua vida profissional, no qual tinha como ofício transcrever em livros atos judiciais – a bico de pena! Sim, era obrigatório o uso de canetas-tinteiro.

Eis que chegou a “revolução”, digamos assim, das canetas esferográficas – infinitamente mais práticas. Encontraram elas, porém, pela voz solene das autoridades constituídas, séria barreira. Não teriam, enfim, a mesma confiabilidade das canetas “tradicionais”.

Os doutos de então ensinavam que a tinta das canetas-tinteiro ostentava a expressão “indelével”, em contraste com as canetas esferográficas. Assim, o que havia sido escrito com estas o tempo apagaria – algo inadmissível em se tratando do registro de atos judiciais.

Reservou-se, desta forma, o uso das canetas esferográficas apenas para aquelas anotações sem valor. Para os rascunhos, em uma expressão.

Foi assim que, ao longo de alguns anos, meu dileto amigo penosamente escreveu milhares de páginas com uma caneta-tinteiro à mão. Era o jeito. Havia que se ganhar a vida, afinal.

Passou-se o tempo – e com ele veio uma enchente de proporções bíblicas. O prédio que abrigava o cartório ficou praticamente submerso. O prédio e os livros de registro, claro.

Findo o dilúvio, as águas baixaram. Chegou o momento de reparar-se o estrago e retomar-se a vida. Foi quando descobriu-se que todos aqueles registros feitos com a indelével tinta das canetas-tinteiro simplesmente haviam desaparecido. Idos com a enchente. Ficou apenas o papel manchado, testemunha do atraso de uma instituição.

Enquanto isso os rascunhos e anotações de menor importância, grafados com canetas esferográficas, surgiram garbosos dos cantos mais humildes da burocracia. Desmentiram, com a veemência do exemplo, a sapiência dos doutos.

Décadas se passaram. Chegamos ao Século XXI. Já nos preparamos para ir a Marte. E ainda lidamos com atestados de residência, comparecimento presencial para prova de vida, carimbos etc.

Pois é. A caneta-tinteiro não morreu, eis a verdade. Apenas mudou de nome e endereço. Continua viva. Dela não abrimos mão. Afinal, como exclamou Émile de Girardin, “todos falam de progresso, mas ninguém sai da rotina”.


Pedro Valls Feu Rosa é jornalista, escritor e desembargador no ES. E escreve regularmente para a AGENCIA CONGRESSO