Por Ney Bello – A última fronteira da racionalidade democrática talvez seja a vedação do uso político do processo penal.

A razão democrática nos impõe que as contendas políticas sejam resolvidas nas urnas, por meio do voto e do desejo da maioria, e que a mão do Estado não discrimine gregos e baianos, troianos e filisteus.

Ser democraticamente racional implica condenar ou absolver quem quer que seja independentemente do comunismo ou fascismo professado, fazendo-o em razão do ato praticado e do reconhecimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo penal.

Essa mesma racionalidade exige que Judiciário e Ministério Público obedeçam a suas funções constitucionais e não pratiquem atos com o objetivo de melhor pontuar no jogo político.

O binômio amigo x inimigo construído por Carl Schmitt não pode ser usado por instituições e Poderes do Estado sem que isso cause uma ruptura na própria ideia de Estado, democraticamente considerado.
Ministério Público, como parte que é, pode ter adversários em processos judiciais, mas não pode ter inimigos. O Judiciário, como imparcial que é, não pode ser combatente de nada, mas sim ente decisor de uma contenda.

Isso se dá pela só razão de o Estado ocupar uma função superior ao binômio amigo x inimigo, que se restringe ao campo da disputa política para controle do Governo, e não se aplica às relações do Estado com os cidadãos.

Rompe-se a barreira da separação funcional entre o sistema político e o sistema jurídico quando os fins políticos passam a ser justificadores de atuações jurídicas.

Quando as condenações e as absolvições são usadas não para realizar o direito penal objetivamente considerado, mas como etapa do processo político, já deixamos de ser Estado Democrático de Direito e voltamos a período anterior à modernidade.

Esse desvio de finalidade — ou erro funcional — na atuação das instituições do sistema de justiça, que por óbvio não deveriam compor o sistema político, também se demonstra através da linguagem.

Sujeitos do embate jurídico professam o mantra maniqueísta do combate à corrupção: ou se é a favor da corrupção ou contra ela. Obviamente, aquele que se prende aos pressupostos do direito penal objetivo e não vê crime cometido ou não vê justa causa para uma prisão cautelar — conforme a lógica do discurso maniqueísta — não é um aplicador do direito, é “a favor da corrupção”!

Da mesma maneira, aquele que pede ou defere uma prisão sem justa causa, movido por sua íntima convicção, é contrário à corrupção, mesmo que pratique um crime para combatê-la, segundo o mantra ideológico por muitos professado.

A linguagem não é neutra, muito ao revés! O uso de terminologias ideologicamente construídas — como o termo “combate à corrupção” — ocupa um papel central na legitimação pelo senso comum de uma lógica ideológica para o Judiciário e Ministério Público que os confundem com a política. É o discurso político invadindo o sistema de Justiça.

E quando o Ministério Público ou o Judiciário deseja ocupar o lugar de fala do Executivo ou do Congresso Nacional? Obviamente o que ocorre é a invasão do espaço político pelo sistema jurídico. Um “senador do MP em cada Estado da Federação” ou uma bancada de “deputados que sejam juízes na Câmara”… isso nada mais é do que uma inversão de valores, uma invasão do jurídico no político, uma desconstrução do universo da política e, consequentemente, do próprio Judiciário.

O desejo do sistema jurídico de controlar a política — e fazê-lo após destruí-la — além de antidemocrático demonstra a incoerência do discurso.

Como negar um espaço do qual o interlocutor quer fazer parte? Como demonizar a política almejando dela fazer parte? Como rejeitar o espectro político e querer ocupar seu lócus?

Essas questões só deixam a nu uma realidade: não podemos confundir política com Poder Judiciário; sistema político com sistema de Justiça. Se o fazemos, destruímos a política e a Justiça, e abrimos as portas para a barbárie institucional e a falência da democracia.

Quando a invasão indevida de espaços é levada a cabo pelo direito penal ou processual penal, o distanciamento da modernidade é mais latente.
O Juiz estará usando da limitação do direito de ir e vir como instrumento de desejo político, como via de acesso à posição mais favorável no jogo político e ideológico.

A racionalidade do processo penal é a última fronteira porque através da aparente juridicidade de condutas se afastam adversários – ou inimigos – e se joga o jogo da política através da limitação patrimonial e do direito de ir e vir.

Quem ganhou a eleição deve governar; quem se elegeu deve legislar; quem passou no concurso deve julgar. A cada um aquilo que o espaço democrático lhe atribuiu.

Juízes não são legisladores; promotores e procuradores não são senadores; nenhum de nós é o presidente.

A contenção do poder dá-se pelo seu correto exercício, nos exatos termos previstos num Estado Democrático de Direito.

Ney Bello é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras