Dia desses meditava sobre o futuro do Poder Judiciário. Será que o teremos? No Reino Unido, por exemplo, já discute-se a privatização de todos os serviços judiciais – todos!

Pelo mundo afora um lento mas constante processo de corrosão nos descaracteriza e subordina de forma crescente aos caprichos do sistema político.

Fico a recordar o famoso conselho de Benjamim Disraeli à Rainha da Inglaterra: “Majestade, o povo está insatisfeito e clama por mudanças. Se elas não forem feitas por nós serão feitas sem nós – e, o que é pior, contra nós”.

Contemplo o presente. Apenas 2% do que acontece nas ruas chegam ao “mundo das leis”. Existimos mais como fator de contenção que como força de solução.

Será mesmo que teremos algum futuro? Ou somos a última geração altiva desta instituição?

Eu desconheço a resposta. Apenas sei que nosso tempo de reação aproxima-se do fim. Não nos contempla mais a passividade. E, como alerta a canção, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Mas o que fazer?

Humildemente sugiro que nos afastemos das discussões cotidianas rumo a um ponto de vista mais amplo – e que lá, serenamente, façamos uma súplica ao Criador.

Oração: Senhor, temos uma instituição em crise, a apequenar as ruas e a ser por elas apequenada.

Dai-nos luz para que compreendamos a falência do nosso sistema legal. O esgotamento de um modelo institucional que nos afasta da justiça.

Que tenhamos sabedoria para conceber estruturas legais e institucionais compatíveis com o século XXI e com a realidade do nosso país, porque temos vivido na alienação.

Que não vejamos nos sistemas eletrônicos panaceia alguma, porque temos digitalizado a burocracia e chamado isto de modernização.

Que não fiquemos a inchar nossos quadros inutilmente e chamar isto de fortalecimento institucional, porque sob o sistema vigente nunca teremos recursos humanos suficientes.

Que não insistamos na construção de mais juizados e tribunais, porque não temos condições de utilizá-los devidamente.

Que tenhamos noção do ridículo ao trombetear a eliminação de alguma formalidade menor como tendo sido importante desburocratização, porque já a findar a paciência das pessoas.

Que compreendamos, enfim, que “mais da mesma coisa” pouco resolverá – apenas aumentará o sacrifício do povo.

Inspira-nos, Senhor, para o futuro.

Que não passemos anos a fio a discutir se dado processo é municipal, estadual ou federal, se é daqui ou dali, de lá ou de acolá, porque isso semeia a descrença em nossa instituição – e, afinal, somos todos juízes.

Que não percamos horas a ler textos em longas sessões, porque isso provoca sono nos ouvintes e nos apequena.

Que não pratiquemos atos inúteis ou ridículos por conta da burocracia cega, porque isso nos mediocriza enquanto profissionais.

Que amanhã, enquanto julgadores criminais, não nos seja imposto ouvir desnecessariamente pessoas que já foram ouvidas durante o inquérito, porque isto as degrada, diminui a autoridade policial e nos humilha.

Que compreendamos que nossas abarrotadas masmorras, digo, prisões, não são e nunca serão suficientes, porque isto nos abrirá novos caminhos baseados na ciência e na lógica.

Que nossas masmorras, digo, prisões, dado serem habitadas quase que somente por miseráveis, nos façam perceber que temos dado aos poderosos direitos que eles não tem ou negado aos fracos direitos que eles tem – o que nos coloca em pecado mortal.

Renove, Senhor, nossa rotina de trabalho.

Que nossos sistemas tecnológicos priorizem a simplicidade, porque eles são apenas um meio, e não um fim.

Que sejamos sábios no uso da denominada “inteligência artificial”, porque ela é incapaz de aprender o que quer que seja – é apenas um algoritmo “burro” que calibramos, e de forma opaca.

Que vejamos na tecnologia um caminho de retorno à lógica e não uma ferramenta de perpetuação da burocracia, porque esta nos condena e aquela nos salva.

Que a população saiba de forma simples quem está contribuindo para a morosidade que nos macula, porque ninguém suporta mais a falta de transparência.

Que nossa produtividade não seja reduzida a simples números, porque isso pouco mede.

Que nossos mecanismos de controle disciplinar consigam afastar os maus sem desanimar os bons, porque é fundamental que possamos trabalhar em paz.

Que tenhamos condições de ser verdadeiros juízes e não revisores do trabalho de assessores, porque esta é uma contradição dos nossos dias.

Senhor, abençoe o nosso local de trabalho.

Que em nossos prédios haja segurança discreta e pronta, mas nunca aparatos constrangedores, porque eles afastam a população.

Que o Poder Judiciário tenha uma parcela fixa no orçamento, porque deixá-lo sujeito aos caprichos dos suseranos de plantão põe sob risco a democracia.

Que nossa instituição não contemple que a transparência, sem confundi-la com a exposição, porque aquela nos fortalece, mas esta nos fragiliza.

Que nossa administração somente aja iluminada por estudos técnicos consistentes, porque já não há espaço para gestos afoitos fruto da vaidade de alguns poucos.

Que haja em nosso meio o devido respeito à continuidade administrativa, porque não temos o direito de fazer aquilo que criticamos nos outros.

Ilumine, Senhor, nossos profissionais.

Que nossos concursos de admissão afiram a vocação e a formação humanística dos candidatos, antes que o decorar mecânico de conceitos ao fim do cabo vazios, porque se assim não for perderemos, enquanto corpo, a sensibilidade.

Que nossa autoridade repouse principalmente em uma estatura moral nobre, porque cargos não fazem pessoas, e sim o inverso.

Que nossas interpretações respeitem a vontade do legislador, porque eles foram eleitos e nós não.

Que aceitemos, com o escritor francês Victor Hugo, a verdade simples de que quem é compassivo com os lobos condena os carneiros.

Que tentemos com ardor respeitar os lares e as famílias dos que estão sob julgamento, porque ações espalhafatosas as profanam, e nossa missão é distribuir luz, antes que calor.

Que tenhamos sensibilidade política mas não sejamos “politicóides”, porque já Voltaire nos ensinava que os juízes incorruptíveis são os que se vendem mais barato.

Que a política em sua pior acepção não contamine nossa Casa, porque uma classe desunida fatalmente será esmagada.

Que nossas decisões sejam redigidas em português claro, porque o “juridiquês” é um escárnio aos 68% dos brasileiros entre 15 e 64 anos que não conseguem ler nada além de um anúncio de cinco palavras.

Que o mundo das leis não utilize por mera afetação palavras em idiomas estrangeiros, porque tal provincianismo nos humilha enquanto povo.

Que sejamos somente juízes, porque quem abusa da força do cargo inevitavelmente descobrirá sua fraqueza.

Que sejamos corporativistas apenas no bom sentido do termo, porque a leniência nos transforma em cúmplices e nos desacredita perante o povo.

Que não possamos decidir sozinhos sobre a sorte dos nossos semelhantes, porque somos imperfeitos demais para fazê-lo.

Que colegiados proporcionais à complexidade do caso sejam a regra, porque a maior segurança que inspiram permitirá a simplificação dos ritos.

Que nosso sistema processual seja simples a ponto de ser compreendido pela população, porque não temos o direito de submeter a vida à vaidade de conceitos herméticos.

Que tenhamos condições de examinar problemas e não processos, porque é isso que a sociedade espera de nós.

Finalmente, Senhor, que nossas togas nunca sejam abadás, porque, se de nós não se espera a perfeição, exige-se seriedade.


Pedro Valls Feu Rosa é jornalista, escritor e desembargador no Espírito Santo e colabora regularmente com a AGÊNCIA CONGRESSO.

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