Philip Dick

POR NEY BELLO – O uso da distopia virou coqueluche da geração milênio. Concordo que nada mais estranho do que usar um termo em voga nos anos oitenta para definir o entusiasmo contemporâneo por tratar de realidade, imaginando coisas que não existem.

Philip Dick – morto em 1982 – não imaginaria o sucesso que narrativas como Blade Runner, O Homem do Castelo Alto e Minority Report fariam por volta de 2019.

A distopia funciona como o anverso da utopia. Caracteriza-se por um status futuro de opressão e perversão da realidade.

Em certo paralelismo com a distopia, há a fantasia! Há também o realismo fantástico!

Todos trabalham com uma realidade estranha, ou paralela, que é usada para explicar o mundo em que vivemos.

Diferentemente da hipótese opressora de Admirável Mundo Novo ou de 1984, algumas obras do cinema projetam uma performance melhor para fatos históricos. Distorcem-os!

Assim, Quentin Tarantino pode sentir o sucesso – e surfar nessa onda do gosto por irrealidades, utópicas ou distópicas – falseando belamente a história, como o fez em Bastardos Inglórios e Era Uma Vez em….Hollywood.

Mas o que esse gênero da literatura e do cinema tem a ver com processo penal?

Se olharmos bem de perto veremos que o processo penal também é uma irrealidade. E pode ser uma utopia ou uma distopia. Todo processo, em alguma medida, é um falseamento da realidade. É uma utopia ou distopia formalizada num produto.

Processo penal se constrói sobre fatos e suas consequências jurídicas. Portanto, processo criminal é uma atividade pública tendente a aplicar normas sobre fatos que precisam ser comprovados no bojo do próprio procedimento. É uma relação entre quem acusa e quem se defende, triangularizada pelo Estado-Juiz.

É possível copiar a realidade ao ponto de poder, futuramente, repetir todo o encadeamento fático que ocorreu até o momento em que um crime foi cometido? Será possível repetir inteiramente uma cadeia causal e saber, com segurança e certeza, exatamente o que aconteceu? E mais: será possível fazê-lo dentro das regras instrumentais estabelecidas dentro de um Estado Democrático de Direito?

Não fora o bastante ser impossível repetir fatos e conhecer a realidade em toda sua inteireza, ainda há as limitações instrumentais da atividade investigativa do Estado.

Desta maneira, reconhecido um grau de ceticismo necessário ao conhecimento fático-criminal, a verdade que se produz num processo apto a condenar ou absolver alguém é uma utopia ou uma distopia. No mínimo, uma bela dosagem de fantasia é natural, quer a chamemos de realidade fantástica, de mentira ou de verdade processual.

Aquilo que o processo prova nunca é, de fato, o que aconteceu.

Vige entre nós uma utopia: a de que o processo crime se conduz pelo princípio da verdade real.

Pode vigorar entre nós uma distopia: a verdade falseada conduzindo à opressão do Estado sobre o cidadão.

Haverá, entre nós, uma realidade fantástica: a verdade possível leva à absolvição de quem de fato cometeu um crime.

Neste contexto utópico, distópico e fantástico há de se conviver com a realidade da prova nula.

Ela demonstra a realidade com um grau de realismo muito grande, mas não poderia ter sido utilizada porque não foi produzida conforme o direito. Na sua gênese, ou na sua produção, não se observou limites que a lei exige.

Como compatibilizar tudo isso? Como realizar o princípio da verdade real com as garantias de um devido processo legal? E o que fazer quando o conjunto de fatos não for preciso, mas a prova nula for precisa?

Escuta telefônica, sem a devida autorização judicial, que conduz ao reconhecimento da autoria do tráfico de entorpecentes e ao encontro da droga; busca e apreensão no endereço errado, que permite encontrar a prova de outro crime; roubo de um computador, que resulta no encontro de uma planilha de corrupção passiva e ativa…
São exemplos de provas nulas que podem aproximar o processo da verdade real, mas que ultrapassam os limites do Estado Democrático de Direito.

Sem elas, o processo poderá utopicamente ou distopicamente se converter numa realidade fantástica.

Onde estará a melhor decisão a ser tomada? Aceitar a prova nula em nome da verdade real ou reconhecer sua nulidade em nome do devido processo legal? 

O que é fazer?

Antes de mais, deve-se reconhecer que a “verdade real” é uma ilusão de ótica. O processo crime não reproduzirá jamais os fatos como efetivamente aconteceram.

Em segundo lugar deve-se estabelecer, por escolhas valorativas, qual o ponto mais importante a ser preservado.

Numa sociedade onde o medo de crimes praticados diuturnanente é dominante, a tendência da sociedade é que nenhum criminoso seja absolvido por “filigranas” processuais. Escutas ilegais, buscas indevidas e provas roubadas tendem a ser aceitas pelo senso comum, quando o desejo socialmente disperso, ou conduzido, tende à punição por crimes com os quais o cidadão não aguenta mais conviver.

Por outro lado, em sociedades mais equilibradas e seguras, o receio é de uma atuação autoritária, abusiva e ilegal do Estado – subvertendo as liberdades civis – e nos conduzindo a uma distopia. As comunidades politicamente mais sólidas têm medo do Homem do Castelo Alto e não costumam perdoar excessos do Caçador de Andróides.

O que nos torna mais fortes como democracia, mais perenes como sociedade regida pelo direito e não pelo heroísmo, parece ser o respeito à lei, e não a aceitação de uma nulidade invasiva – cerceadora das liberdades civis – mesmo que ela aproxime a realidade dos olhos do leitor.

Mas há uma questão ingrata. Há uma lâmina que fere de morte a racionalidade: como admitir – diante de uma prova nula – que um inocente seja preso? No caso dos países que adotam a pena de morte, como matar alguém na certeza – processualmente nula – de que o acusado não cometeu o crime?

É um paradoxo – que pode conduzir a uma realidade fantástica ou a uma distopia – tanto o reconhecimento da aplicabilidade da prova nula, quanto a sua negação.

Talvez a melhor saída seja a mais simples.

Aceitar que o princípio da verdade real é uma utopia.

Admitir que sociedades maduras devem conviver com o erro no reconhecimento da verdade judicial – e com injusta absolvição – quando o reconhecimento da nulidade é para impedir que limites do Estado sejam ultrapassados.

Acolher a prova inteiramente nula quando isso implica impedir que alguém seja punido injustamente.

Não sem razão, e com farta justificativa histórica, chegamos no império da racionalidade.

Utopias ou distopias são apenas narrativas, porém é desse caldo que emergem prisões e liberdades. Por essa simplória razão, a responsabilidade do juiz é bem maior do que a de Philip Dick ou Quentin Tarantino.