‘DITADURA É ALGO FORA DO HORIZONTE’, DIZ GABEIRA – Foto: Daniel Teixeira

SÃO PAULO – Seja como guerrilheiro, exilado, militante dos direitos humanos, ambientalista, deputado, jornalista ou escritor, Fernando Gabeira se dedica à vida política brasileira há praticamente meio século.

foi filiado ao PT até 2003, quando se deu um rompimento rumoroso com Lula e seu séquito. Foi também colega de Jair Bolsonaro por 16 anos, na Câmara dos Deputados.

 Autor do clássico “O que é isso, companheiro?”, recentemente recebeu um ‘abraço hetero’ de Bolsonaro, com o ex-capitão dizendo-se apaixonado, em entrevista na GloboNews, há dois meses.

 

Gabeira construiu uma trajetória original e de respeito, e em suas palavras talvez estejam algumas chaves para se entender o tempo de hoje.

“Eu acho que a sobrevivência da democracia não está ameaçada, mas a qualidade dela, sim. A situação brasileira pode ser um pouco mais aproximada com a situação dos Estados Unidos, onde a regressão autoritária acontece de uma certa maneira contrabalanceada pelas instituições, pela justiça, mídia, parlamento”.  

 “As circunstâncias eleitorais que levam o Bolsonaro e essa vitória são circunstâncias que não podem ser muito reduzidas à visão de que é só a direita que está chegando ao governo. Existem não somente várias visões de direita, como muita gente que é basicamente contra a corrupção.

Não significa que todo o eleitorado que vota no Bolsonaro pensa como ele. É muito comum você ouvir: “eu voto no Bolsonaro apesar das coisas que ele pensa”. É um raciocínio, um cálculo que as pessoas fizeram julgando muito com a presença do PT do outro lado. E ele, muito sabiamente, explorou isso desde o princípio”.

 “Não acho Bolsonaro preparado para ser presidente. Acho que ele vai ter que se preparar sendo presidente. O Bolsonaro é um deputado do baixo clero que praticamente ignorou o debate parlamentar. Colocou que aquilo era o sistema e que ele seria contra aquele sistema.

Trabalhei com ele na Câmara num contexto de concordâncias na questão da luta contra a corrupção, e num contexto de divergências a respeito de gays, negros, mulheres, toda essa temática”.

 “Eu não posso tomar o Haddad como candidato. Na verdade, ele é a pessoa determinada por um grupo que se recusa a fazer uma autocrítica de toda a roubalheira que houve no país, e que está propondo à sociedade – de uma forma que considero inadequada –, que ela dê um cheque em branco para voltarem e fazerem a mesma coisa.

Se você não faz uma autocrítica sobre aquilo tudo que aconteceu – e há uma montanha de provas –, e se dispõe a ganhar de novo o governo, é porque você quer continuar fazendo o mesmo”.

 “Eu acho que vamos ter uma possibilidade – quem sabe num horizonte próximo –, de todas aquelas pessoas que estavam separadas começarem a se unir um pouco em torno de uma possibilidade de uma frente democrática que não seja essa caricatura que o PT propôs.

Uma frente democrática com pessoas, sem partidos querendo hegemonia; sem essa perspectiva eleitoral imediata. Uma frente democrática que pudesse temperar o caminho, moderar o caminho. E as próximas eleições fariam seu ajuste”.

 “A ditadura é algo fora do horizonte. As Forças Armadas vão manter uma relação de autonomia em relação a Bolsonaro.

Eu acho até que potencialmente, como elemento moderador. Existe no pensamento militar uma visão mais moderada do que do Bolsonaro. Ele é a versão mais popular, com uma série de impurezas que nem sempre os militares consideram uma coisa sensata”.

 “Collor veio num contexto ainda de uma eleição analógica. O Bolsonaro veio num contexto de uma eleição digital. Ele tem muitos admiradores que o apoiam, e existe também um corpo de militantes na internet que defendem suas posições.

Algo que o Collor não tinha. Ele não tinha ninguém. E o Bolsonaro tem, progressivamente, alguns setores intelectuais que começam de alguma maneira a aparecer em sua defesa. Então, ele tem, no meu entender, uma base mais enraizada que a do Collor”.

 “Os elementos do programa do PT que se parecem com o projeto venezuelano foram amplamente discutidos. Este programa surgiu de uma análise do impeachment baseada na presunção de que o partido não procurou tomar o poder, mas apenas vencer as eleições.

Uma proposta de Assembleia Constituinte, controle social da mídia e conselhos populares acaba parecendo com o que se passa na Venezuela. E finalmente as entrevistas de José Dirceu sobre o tema, falando em controlar o Judiciário e tomar realmente o poder. Tenho a impressão de que, se o PT vencer as eleições com esse programa, a oposição teria que ser um pouco mais enérgica”.

 “Quando esse tema cultural, racial e sexual entrou na campanha, de uma certa maneira abriu um pouco a caixa de Pandora na sociedade, porque veio de cima pra baixo. Agora é necessário tapá-la. Mas, vamos fazer o gênio voltar de novo pra garrafa?

O ideal é começar a baixar o tom, porque grande parte da resistência, da animosidade que o Bolsonaro tem com os movimentos minoritários – seja de gays, mulheres, negros – é que ele os vê muito associados à esquerda e ao PT. Ele os vê como uma continuação do PT.

Na verdade esse é um problema brasileiro. Esses movimentos ficaram muito dependentes do poder do governo, às vezes até financeiramente. E se associaram com a esquerda.

 Naturalmente, existe uma visão religiosa, missionária, que tende a se transportar para a política e deseja, de uma certa maneira, uniformizar o comportamento. Essa é a visão conservadora mais clássica, inclusive de alguns setores evangélicos.

É importante que não haja nem grandes vitoriosos, nem grandes derrotados. Mas, que se chegue a uma sociedade onde as pessoas compreendam que elas não são donas do único modo bom de viver. Precisam ter uma tolerância”.

Entrevista concedida a Estado de São Paulo.